terça-feira, 24 de dezembro de 2019

24 de dezembro


A inocência dormiu
de olhos abertos

Em vão tentamos
amparar seu vulto

Nem tudo está perdido:
ainda há o medo

E alguma inquieta paz
nos punhos

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Primavera

Ventos de luz e sal na ressequida fronte
onde ela aporta seu olhar: cresta-lhe os músculos
a morna agitação de todos os crepúsculos,
a harmonia final transfeita no horizonte.

Nem a busco entender, nem peço que me conte
o que Vésper lhe diz e aflora nos minúsculos
feixes a se esparzir, tingindo o lusco-fusco: Luz
salina, ardente espuma, em seu olhar desponte,

e não deixe, uma vez vazado o oceano mudo
sobre a concha das mãos salpicadas de areia,
nada além da ilusão de estarmos e de sermos

Cismo. E ela me beija e, rindo disso tudo,
observa como o sol, nesse ângulo, clareia
a primavera morta em nossos lábios ermos.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

30.09


Tradução – leitura escrita,
eco, narciso ou imago:
quanto mais agita o lago,
melhor o rosto se fita.

domingo, 22 de setembro de 2019

Ícaro


Observamos um ninho da sacada,
O filhote caído em nossa rua:
Sua mudez descreve uma parábola.
E minha mão repousa sobre a tua.

Existir: indistinta revoada.
Em nossa rua um bêbado caminha.
Um pássaro maior que o céu desaba.
E tua mão repousa sobre a minha.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Quintal


A gata carrega a mariposa entre os dentes,
efêmero troféu daquela tarde.

Cruza o quintal graciosamente,
da garagem vazia aos galhos secos da horta,
cuspindo no concreto
essa que debalde bate as asas,
as alvas asas retalhadas.
E basta uma patada

para tê-la outra vez submissa,
pétala branca no veludo negro,
ora retida em agulhas de marfim,
ora cuspida, arrastada, mascada,
até ser impossível distinguir
a presa
das presas que a retêm.

Na tarde aos poucos deglutida,
não há rancor nem escárnio
(uma finge não saber que está matando,
outra finge não ver que está morrendo):

há somente a Beleza,
luz maciça e autofágica.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Bestiário


I

o cão posa para a foto
como alguém que já se foi
está nos olhos do dono, sorri
sem pretensão de eternidade

a luz penetra indiferente a câmara:
o cão desdenha
o que não seja cinza, fogo

como pausar a coisa, imortalizar
quem não se sabe finito?

mas morrerá um dia, e nesse dia apenas,
cego e sem dentes sob a própria sombra
dormindo como quem desperta

pois finais não lhe convêm:
o cão é um ritmo
que silencia o tempo.


II

a tartaruga anciã
não entende de passar:
leva em seu casco de cortejo
uma civilização ausente

seus membros tectônicos
rodam as lentas, dúbias engrenagens
que um deus coberto de líquens
se esqueceu de partir

como inscrever-te em versos,
tu, negação própria do poema?
tu que não marchas, triunfante,
para teu próprio fim?

palmilhas, milenar quelônio,
a planície universal,
firmando no azul subterrâneo
as raízes do tempo.

domingo, 16 de junho de 2019

Lemons in the sky, ou Leminski na gringa

 
Foto de Márcio Santos.


Instigado por uma amiga a traduzir para o inglês o seguinte poema de Leminski, posto aqui o resultado, que muito me agradou. Por razões óbvias, foi preciso trocar o nome da moça, e minha tradução se tornou como que uma versão libérrima do original. Mas acredito que o Paulo o entenderia melhor do que ninguém.


Ali

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece


There
(Paulo Leminski, trad. Pedro Mohallem)

Para a Alice.

there is
one
there is
a

if theresa
knew there is a
lot in what theresa says
there isn't

and if
there is a word
which comes and goes
better unheard

there
right there
inside theresa
only theresa
reminds theresa
there is a her

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Ceci n'est pas un poème


pós-moderna de dalmática,
de expressão sisuda e hermética,
que aleijão te fez estática,
concretou a tua estética?

que acidez acidolática
compôs tão dúbia dialética?
que linguística linfática,
morfologia morfética?

que crise ou medrosa crítica
mais misantropofagótica
baniu-te à sombra, adamítica?

que otimismo ou falta de ótica
riscou-te assim, nula enclítica,
farsa, flor anacolútica?


Este espelho pequenino
Que carrego de menino
Espiei-o certo dia:

Amarrado no pescoço
Feito olho mágico ou poço
Quanto eu visse, refletia.

Quis me ver: levei-o à face
E como o olhar se enturvasse
À memória de tal dia,

No espelhinho que carrego
Eu vi um menino cego.

sábado, 9 de março de 2019

Elizabeth Browning à Portuguesa


Depois de ler o brilhante ensaio do Elaphar sobre a poeta vitoriana, saí coçando para mexer em alguns versos já há muito na pasta de poemas por traduzir. Disso, segue esta versão mais ou menos fiel do primeiro dos "Sonnets from the Portuguese".


I

I thought once how Theocritus had sung
Of the sweet years, the dear and wished-for years,
Who each one in a gracious hand appears
To bear a gift for mortals, old or young:
And, as I mused it in its antique tongue,
I saw, in gradual vision through my tears,
The sweet, sad years, the melancholy years,
Those of my own life, who by turns had flung
A shadow across me. Straightway I was ’ware,
So weeping, how a mystic Shape did move
Behind me, and drew me backward by the hair;
And a voice said in mastery, while I strove,—
“Guess now who holds thee?”—“Death,” I said. But, there,
The silver answer rang,—“Not Death, but Love.”



1

Pensando em como Teócrito cantara
Os anos, doces e anelados anos,
Que vêm, afáveis mãos, dar aos humanos
Velhos ou jovens sua joia rara:
Dessa língua que há muito se calara,
Vi emergir em meio a desenganos
Os doces anos, merencórios anos
De minha vida, onde uma sombra amara
Se projetou. Em prantos percebi
Mística Forma atrás de mim se pôr,
Pelas mechas puxar-me para si;
Em tom de mando ouvi, com estupor:
"Quem te possui?", "A Morte", respondi,
E a argêntea voz ressoou: "Não Morte — Amor."