quinta-feira, 4 de julho de 2019

Bestiário


I

o cão posa para a foto
como alguém que já se foi
está nos olhos do dono, sorri
sem pretensão de eternidade

a luz penetra indiferente a câmara:
o cão desdenha
o que não seja cinza, fogo

como pausar a coisa, imortalizar
quem não se sabe finito?

mas morrerá um dia, e nesse dia apenas,
cego e sem dentes sob a própria sombra
dormindo como quem desperta

pois finais não lhe convêm:
o cão é um ritmo
que silencia o tempo.


II

a tartaruga anciã
não entende de passar:
leva em seu casco de cortejo
uma civilização ausente

seus membros tectônicos
rodam as lentas, dúbias engrenagens
que um deus coberto de líquens
se esqueceu de partir

como inscrever-te em versos,
tu, negação própria do poema?
tu que não marchas, triunfante,
para teu próprio fim?

palmilhas, milenar quelônio,
a planície universal,
firmando no azul subterrâneo
as raízes do tempo.