terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Soneto LV: o "Exegi Monumentum" de Shakespeare.





Trago hoje minha tradução de um soneto do Bardo que indiscutivelmente bebeu da fonte do poeta Quinto Horácio Flaco (65 a.C. — 8 a.C.). Propagador de diversos lugares-comuns da Lírica Ocidental — basta citarmos os lemas carpe diem, locus amoenus e aurea mediocritas —, Horácio encerra seu terceiro livro de poemas com uma obra muito significativa: a Ode 3.30, que descreve a poesia como um monumento perene, muito mais duradouro que qualquer outro levantado por mãos humanas. Leiamos:

Exegi monumentum aere perennius
regalique situ pyramidum altius,
quod non imber edax, non aquilo impotens
possit diruere aut innumerabilis
annorum series et fuga temporum.
non omnis moriar multaque pars mei
vitabit Libitinam; usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita virgine pontifex.
dicar, qua violens obstrepit Aufidus
et qua pauper aquae Daunus agrestium
regnavit populorum, ex humili potens,
princeps Aeolium carmen ad Italos
deduxisse modos. sume superbiam
quaesitam meritis et mihi Delphica
lauro cinge volens, Melpomene, comam.


Em tradução de Elpino Duriense:


"Um monumento mais que o bronze eterno
e que reais pirâmides mais alto
arrematei, que nem voraz dilúvio,
Áquilo iroso ou série imensa de anos,
nem dos tempos a fuga estragar possa.
Eu não morrerei todo; grande parte
de mim se salvará da morte. Sempre
crescerei novo com louvor vindouro,
enquanto ao Capitólio o grão Pontífice
subir com a virgem taciturna. Aonde
soa o violento Aufido, e aonde o Dauno
pobre de água regeu agrestes povos,
dir-se-á que eu, humilde poderoso,
fui o primeiro que o Eólio carme
trouxe à Itálica cítara. Melpômene,
com soberba por méritos ganhada,
eleva-te e de boa mente cinge
com Délfico laurel os meus cabelos."

O soneto de Shakespeare explora o mesmo lugar-comum da ode de Horácio, fazendo referência direta à poesia como monumento perene logo nos primeiros versos. Contudo, os fins dessa perenidade são diversos aos da conquistada pelo lírico latino: não é o poeta, mas sim a figura amada que se imortalizará no verso. 
Como sempre, minha proposta de tradução buscou a regularidade formal, mantendo os esquemas métrico e rímico do soneto inglês. Mais uma vez evitei a tradução literal, almejando o quanto possível a naturalidade e a espontaneidade da dicção poética em língua portuguesa; naturalmente, tentei deixar algo de mim na tradução. Optei por traduzir os pentâmetros iâmbicos em decassílabos por ser o metro mais tradicional de se compor sonetos em língua portuguesa, e pelo fato de o poema em questão não exigir tantos malabarismos para tal quanto outros da mesma coleção. 
Gostaria, por fim, de mencionar a proposta de tradução de Emmanuel Santiago para os sonetos de Shakespeare, vazados brilhantemente em dodecassílabos de andamento anapéstico (seus versos seguem o ritmo tumtumTUM tumtumTUM tumtumTUM tumtumTUM). Uma solução engenhosa que, a meu ver, combinou muito com o estilo do Bardo.

***

LV

Not marble, nor the gilded monuments
Of princes, shall outlive this powerful rhyme;
But you shall shine more bright in these contents
Than unswept stone, besmear'd with sluttish time.

When wasteful war shall statues overturn,
And broils root out the work of masonry,
Nor Mars his sword, nor war's quick fire shall burn
The living record of your memory.

'Gainst death, and all oblivious enmity
Shall you pace forth; your praise shall still find room
Even in the eyes of all posterity
That wear this world out to the ending doom.

So, till the judgment that yourself arise,
You live in this, and dwell in lovers' eyes.



*

Mais que o mármore vive, mais que os áureos
Monumentos reais, tão forte rima:
Corpos sem luz ou cor, o tempo exaure-os;
Brilho maior terás no que te exprima.

Quando, em guerra, tombar-se toda estátua,
E os prédios ante a turba que os consome,
Nem Marte, nem do prélio a chama fátua
Queimarão a lembrança de teu nome.

Contra a morte, bem como contra o olvido,
Hás de te impor; e a geração futura
O teu louvor trará junto ao ouvido,
Vendo se erguer do mundo a sepultura.

Até que no Juízo te levantes,
Vives aqui e nos lábios dos amantes.