sábado, 14 de fevereiro de 2015

Sonetos 14 e 17 de Shakespeare.


Estamos na luta.
Já postei uma tradução de Keats (creio que minha mais feliz tentativa de traduzir poesia) e pretendo postar uma de Poe daqui a uns dias. Por ora, vamos de Shakespeare. A primeira data de dezembro de 2013. A segunda, de ontem. Nos dois casos, evitei consultar outras traduções para o português durante o processo (salvo a de Ivo Barroso, luz no fim do túnel para os desesperançosos) para não correr o risco de ficar preso à voz de um terceiro poeta.


***

XIV


Not from the stars do I my judgment pluck,
And yet methinks I have astronomy;
But not to tell of good or evil luck,
Of plagues, of dearths, or seasons' quality;

Nor can I fortune to brief minutes tell,
Pointing to each his thunder, rain, and wind,
Or say with princes if it shall go well
By oft predict that I in heaven find.

But from thine eyes my knowledge I derive,
And, constant stars, in them I read such art
As truth and beauty shall together thrive
If from thyself to store thou wouldst convert:

Or else of thee this I prognosticate,
Thy end is truth's and beauty's doom and date.



14


Não colho nas estrelas o vindouro;
Ainda que dos astros algo traga,
Não sei dizer de sorte ou mau agouro,
Nem clima das sazões, nem fome ou praga;

Nem ver fortunas deste breve instante
Por revelar-lhe a chuva, o raio, o vento,
Nem dar ao nobre a nova confortante
Com símbolos que achar no Firmamento:

Dos olhos teus aufiro-me a razão
E, estrelas vivas, leio em teus olhares
Que o belo e o justo multiplicarão
Se em prole tu também multiplicares;

Se o não fizeres, profetizo assim:
"Teu termo ao justo e ao belo é o fado e o fim."




XVII


Who will believe my verse in time to come,
If it were filled with your most high deserts?
Though yet heaven knows it is but as a tomb
Which hides your life, and shows not half your parts.

If I could write the beauty of your eyes,
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say 'This poet lies;
Such heavenly touches ne'er touched earthly faces.'

So should my papers, yellowed with their age,
Be scorned, like old men of less truth than tongue,
And your true rights be termed a poet's rage
And stretched metre of an antique song:

But were some child of yours alive that time,
You should live twice, in it, and in my rhyme.



17


Quem crerá em meu verso no futuro?
Se canto os teus maiores dons, quem há de?
(embora, sabe o céu, seja qual túmulo
que expõe-te a vida e os traços por metade.)

Pudesse eu descrever-te o olhar distinto
e, em fresca métrica, escandir-te a graça,
diria a nova geração que minto:
"Homem não há que etéreo assim se faça."

Então que o tempo estes papéis maltrate
como a velhacos se desprezam tanto;
sejam teus dotes ímpetos de um vate
e metro bárbaro de antigo canto.

Porém, se houver quem teu legado espelhe,
em dobro hás de viver: no verso e nele.



17 2.0


Não vai rolar que a juventude creia
No meu verso se eu tanto bajular-te,
E olha (Deus é prova) que nem meia
Porção do que és reside na minha arte.

Se escrevo algo no mínimo decente
E te flerto na métrica perfeita,
Sei que dirão: "Como esse poeta mente!
Gente tão linda assim jamais foi feita."

Então, quando for tudo velharia,
E tudo for motivo de chacota,
Dirão que me exaltei naquele dia,
Que passei dos limites e da nota.

Mas, se queres que o Belo te acompanhe,
Ouvi dizer que o filho puxa a mãe...

***

Se o primeiro traduzi em 2013 e o segundo só agora, não foi por falta de atenção a este. Conhecia-o desde então, mas a dificuldade em transformar seus pentâmetros iâmbicos em decassílabos era bem maior. Felizmente, a Musa desceu ontem e deu um jeito nesse atraso. 
Para todos os efeitos, devo dizer que a tradução do XVII focou mais no conteúdo que na estrutura (vide a rima parcial futuro-túmulo na primeira estrofe e, no desfecho, a inversão dos elementos verso-nele). Se eu seguisse literalmente o conteúdo de cada verso, jamais conseguiria encaixar em dez sílabas, e eu não queria apelar para alexandrinos. Não combinam com o bardo.
O emprego excessivo de sáficos em minha tentativa talvez prejudique o compasso original do poema, mas foi o que deu para fazer. Quanto ao XIV, um dos meus desejos era manter a aliteração do último verso, o que não vi em outras traduções.
(Emenda 11/06/15): como podem ver, adicionei uma versão alternativa ao Sonnet XVII, mais prosaica e mais bem-humorada. A ideia foi transportar um sentimento que é tão atual a uma linguagem idem.
Por fim, gostaria de recomendar o blog de um amigo meu, que traduz e critica poesia. É alguém com quem tenho aprendido muita coisa. Ele, inclusive, sugeriu alguns remendos e buriladas nesses dois sonetos.