Não é de agora minha vontade de traduzir esse poema, que é um de meus preferidos do autor e também de um modo geral. Contudo, nunca me atrevi a tocá-lo sem saber o mínimo do francês para compreender o original sem recorrer a outras traduções. Agora, que posso dizer que os estudos têm dado algum efeito (tanto para a língua francesa quanto para a tradução poética), tentei minha própria versão. Mas, como de costume, façamos algumas considerações primeiro.
Primeiro, tenha-se em mente que não pretendo com meu poema representar Baudelaire no Brasil. Vamos com calma. Há traduções no mercado que o fazem competentemente (e outras estão por vir que eu sei), e isso por enquanto basta. O que apresento aqui é uma leitura individual de um poema que me é muito caro.
Segundo, em minha versão, tentei atingir resultados diferentes das que correm por aí, como a de Ivan Junqueira e a de Mário Laranjeira. Para tal, privei-me do contato com qualquer outra tradução para o português desse poema do início ao fim do processo, a fim de não roubar consciente ou inconscientemente as soluções de terceiros.
Formalmente, mantive os versos alexandrinos com cesura na sexta sílaba e segui o mesmo esquema de rimas cruzadas do original. Não logrei, entretanto, a transposição regular do esquema rímico francês, a saber: a alternância entre rimas masculinas (oxítonas) e femininas (paroxítonas). Só me ocorreu fazê-lo na última estrofe.
Terceiro, concedi-me alguma liberdade na construção das sentenças, prezando sempre pela manutenção do sentido e das imagens; alguns termos, somente, foram acrescentados, suprimidos e alterados para fins métricos e sonoros, como é o caso sobretudo de prince des nuées ("príncipe das nuvens") tornado nobre superno, e au milieu des huées ("em meio ao burburinho das multidões", algo assim) tornado preso ao mundano inferno. Essa última, eu creio que seja a transposição que mais se afasta do original, mas não acuso nela perda de sentido, tendo em mente a concepção de multidão na obra de Baudelaire de um modo geral e, de modo pontual, o verdadeiro living hell que foi para o albatroz cair naquele barco. Enfim, todas essas releituras foram pensadas tanto para o afastamento de minha tradução das demais quanto para não bancar o fidus interpres do original, dando um pouco de mim ao poema na medida do inofensivo.
Pois bem: explicados meus motivos, seguem o poema de Baudelaire e, após, minha humilde flor do mal.
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L'ALBATROS
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
O ALBATROZ
Às vezes, por recreio, os homens da equipagem
Capturam no alto-mar imensos albatrozes,
Companhia indolente à nau que segue viagem
Deslizando por sobre os pélagos atrozes.
E basta no convés depô-los, tão somente,
Para esses reis do azul, acanhados e mancos,
As longas e alvas mãos rojarem tristemente,
Pendidas feito um par de remos pelos flancos.
Eis o alado viajor, figura gauche, lassa,
De tanta graça outrora, ei-la engraçada e feia!
Um, tomando um cachimbo, irrita-o com a fumaça;
Outro, a zombar do enfermo órfão do céu, coxeia!
O Poeta é semelhante ao príncipe do céu,
Que chega a rir do arqueiro e afronta os vendavais:
Exilado no chão, em meio ao escarcéu,
Atravancam-lhe o passo as asas colossais.
05 / 2016