("Young Man with a Skull" - Frans Halls)
"And nothing 'gainst Time's scythe can make defence"
(Shakespeare, Sonnet XII)
Falar de tempo dá pano pra manga. Esse companheiro inseparável, essa entidade misteriosa que sobrevive e se prova por meio de símbolos antitéticos: rubor e rugas, vazões e cheias, vinhos e vinagre. As mudanças, as sucessões, os princípios e os términos – é tudo obra do tempo. Não se pode pegá-lo: por mais que a humanidade desenvolva artifícios para enxergar o tempo, por mais que seus movimentos estejam claros no giro dos ponteiros, é ele quem sempre nos pega primeiro.
Implacável maré, o tempo tudo traz e tudo leva. A cada minuto, um pedaço disto tudo naufraga; eventualmente, alguma pouca coisa retorna à praia, e então se vai e não volta mais. O tempo tem dessas mesmo: a nova hora sobrepõe-se à antiga, não acrescentando, mas reduzindo aos poucos a existência ao nada. E nessa constante sobreposição morrem os minutos idos, morrem as horas passadas, morre o tempo, enfim, no não-tempo da Eternidade – ou quem sabe no presente. Ora, se pensarmos bem, a ideia de um presente põe em cheque a existência do que chamamos "tempo". Trocando em miúdos, se eliminarmos todos os aparatos de medição do tempo, i.e., relógios, calendários, agendas e afins, noves fora, o que resta é o agora, e todo esse conceito de passado e futuro torna-se memória e projeção da mente humana. Portanto, há tão somente o eterno agora.
Ou não, vai saber. Isso é o que discutem os três poemas que separei e tentei traduzir, escritos em três momentos diferentes da Literatura Inglesa. O mais antigo é do metaphysical poet e 1º Barão de Cherbury Edward Herbert; o segundo, do romântico inglês Percy Bysshe Shelley, e o mais jovem, por fim, de Emily Dickinson.
***
EDWARD HERBERT DE CHERBURY (1583 – 1648)
TO HIS WATCH, WHEN HE COULD NOT SLEEP
Uncessant Minutes, whil’st you move you tell
The time that tells our life, which though it run
Never so fast or farr, you’r new begun
Short steps shall overtake; for though life well
May scape his own Account, it shall not yours,
You are Death’s Auditors, that both divide
And summ what ere that life inspir’d endures
Past a beginning, and through you we bide
The doom of Fate, whose unrecall’d Decree
You date, bring, execute; making what’s new
Ill and good, old, for as we die in you,
You die in Time, Time in Eternity.
A SEU RELÓGIO, SEM CONSEGUIR DORMIR
Publicado originalmente aqui.
Minutos incessantes, de hora em hora,
Conta-se o tempo e se desconta a vida,
Que, mesmo sendo longa, é suprimida
Por vossos curtos passos; pois embora
Evada de si mesma, não evade
De vós, Fiscais da Morte, que ajuntais
E igualmente partis pela metade
O quanto a vida inspire; em vós, mortais,
Esperamos o Fado, cujas Leis
Marcais, trazeis, cumpris, provendo termos
Ao bom e ao novo – e, enquanto em vós morrermos,
No Eterno morre o Tempo, onde morreis.
TIME
Unfathomable Sea! whose waves are years,
Ocean of Time, whose waters of deep woe
Are brackish with the salt of human tears!
Thou shoreless flood, which in thy ebb and flow
Claspest the limits of mortality!
And sick of prey, yet howling on for more,
Vomitest thy wrecks on its inhospitable shore;
Treacherous in calm, and terrible in storm,
Who shall put forth on thee,
Unfathomable Sea?
Mar insondável! Em cada onda, um ano;
Oceano do Tempo, cujas águas
Temperam-se do sal do pranto humano!
Mar sem praia, se inundas ou deságuas,
Abarcas os limites da mortalidade!
Das presas cheio e urrando ainda por mais,
Vomitas teus despojos em seu rude cais;
Traiçoeiro em calma e atroz na tempestade,
Quem há de velejar
Em ti, Insondável Mar?
Marcais, trazeis, cumpris, provendo termos
Ao bom e ao novo – e, enquanto em vós morrermos,
No Eterno morre o Tempo, onde morreis.
P. B. SHELLEY (1792 – 1822)
TIME
Ocean of Time, whose waters of deep woe
Are brackish with the salt of human tears!
Thou shoreless flood, which in thy ebb and flow
Claspest the limits of mortality!
And sick of prey, yet howling on for more,
Vomitest thy wrecks on its inhospitable shore;
Treacherous in calm, and terrible in storm,
Who shall put forth on thee,
Unfathomable Sea?
TEMPO
Oceano do Tempo, cujas águas
Temperam-se do sal do pranto humano!
Mar sem praia, se inundas ou deságuas,
Abarcas os limites da mortalidade!
Das presas cheio e urrando ainda por mais,
Vomitas teus despojos em seu rude cais;
Traiçoeiro em calma e atroz na tempestade,
Quem há de velejar
Em ti, Insondável Mar?
690
‘Tis not a different time –
Except for Infiniteness –
And Latitude of Home –
From this – experienced Here –
Remove the Dates – to These –
Let Months dissolve in further Months –
And Years – exhale in Years –
Without Debate – or Pause –
Or Celebrated Days –
No different Our Years would be
From Anno Domini's –
690
Em nada a divergir –
Salvo pela Infinitude –
E Dimensão do Lar –
Do Este – vivido Aqui –
Remova as Datas – a Esses –
Dissolva os Anos noutros Anos –
Meses – noutros Meses –
Sem Debates – ou Pausas –
Feriados – Jubileus –
E seriam Nossos Tempos
Como o Tempo de Deus –
09 / 2015
Feriados – Jubileus –
E seriam Nossos Tempos
Como o Tempo de Deus –
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Considerações:
I. Busquei manter equivalência silábica. No "To His Watch...", com auxílio do tradutor e amigo Matheus Mavericco, pude preservar os pentâmetros como decassílabos e as rimas; em "Time", foi necessário transpor o último verso da primeira estrofe, um pentâmetro, como dodecassílabo, sem interferência de sentido; em 690, dei-me alguma liberdade para transpor os tetrâmetros e trímetros ora em octassílabos e hexassílabos, ora em redondilhas maior e menor;
II. Em "Time", optei pela tradução de "shore" como "cais", não "praia" ou "costa", a fim de manter a rima com o verso anterior (o que não é bem um problema, pois a imagem do cais está intimamente ligada aos "shipwrecks" mencionados no mesmo verso); no poema de Dickinson, a expressão "Anno Domini's" foi traduzida como "Tempo de Deus", pois a tradução quase que protocolar "Depois de Cristo" eliminaria uma imagem riquíssima (o tempo divino) e não concluiria o raciocínio do poema original; além disso, o apóstrofo em "Domini's" dá um sentido novo à expressão, de modo que "In the Year of Our Lord" (tradução literal de Anno Domini) torna-se algo como "Lord's Year", ou "Ano do Senhor", mais referente à extensão do tempo em si que a uma data específica – e por isso optei por "Tempo" em vez de "Ano". Isso vale também para o verso anterior: como ano como extensão temporal já apareceu na estrofe anterior, considerei "Our Years" como algo próximo de "Hoje em Dia", que gourmetizando ficou "Nossos Tempos"; e
III. As rimas ora alternadas, ora interpoladas de "To His Watch..." foram mantidas; as irregulares de "Time" também, mas com uma leve mudança: o 5º verso não rimando com o 9º e o 10º, mas com o 8º; a rima consonantal de "Forever – is composed of Nows" foi mantida na primeira estrofe com o "r" final dos versos pares, e a parcial da última estrofe se tornou completa.
09 / 2015