quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Uma valediction de John Donne.


Publicado originalmente no escamandro.

Um trabalho que muito me agradou. Como a postagem original conta com um prefácio bastante esclarecedor do amigo Matheus Mavericco, não ficarei a tecer loas ao poema de Donne; confiram lá o palavrório do maior crítico mirim que você respeita. Por aqui, apenas umas considerações acerca de minhas escolhas. 
De início, a discrepância métrica. Gostaria de ter trabalhado com um verso mais curto (o poema de Donne usa tetrâmetros iâmbicos). Diz-se dessa poesia metafísica soar como "epigramas expandidos": breve, pungente, sem lenga-lenga. Se eu corresse atrás desse aspecto, inevitavelmente perderia muito em imagem e vocabulário, visto que nossa língua não conta com tantos mono e dissílabos quanto o inglês. Daí, o verso decassílabo, que, apesar de mais longo, resolve esse problema e de quebra esbanja em tradição. 

Tentei não fazer rodeios, primando por uma linguagem fluida, valorizando o prosaísmo sem adentrar os domínios do banal e, ao mesmo tempo, respeitando a gravidade que o poema requer. O que temos, por fim, é um coexistir -- a meu ver pacífico -- de arcaísmo (com seu ápice na extinta palavra "aérica", que julguei interessante aplicar por sua semelhança com a original "aery" e por sua acepção mineralógica) e simplicidade (por exemplo, na tradução de "makes my circle just" por "torna-me preciso", concisão que particularmente me agradou).

Um exemplo pontual das dificuldades na tradução: um dos maiores problemas foi traduzir o sexto verso, mais especificamente as expressões "tear-floods" e "sigh-tempests", nas quais Donne tira um sarro das pessoas sentimentalistas. Minha primeira tradução, quando a intenção humorística ainda era despercebida, saiu "Sem que por isso mar e céu movamos". A falta dos termos compostos me incomodou. Foi quando radicalizei com neologismos, provavelmente influenciado pelo experimentalismo tradutológico dos irmãos Campos que lia então: "Sem dorivendavais ou pluvipranto". Adorei a sonoridade, só que (como observado pelo Mavericco) essa radicalização não só alcançava o ponto a que Donne quis chegar como o ultrapassava feito um foguete pós-moderno. De formas que me foi necessário dar uns passos para trás: "Sem escarcéus de dor ou rios de pranto", "escarcéus" aí no duplo sentido de vagalhões e alvoroço. E estava feito.

Por fim, espero que a leitura de minha tradução possa não acompanhar, nem suster, mas seguir os passos do poema de John Donne. Guardadas as proporções entre este mineiro e um dos maiores poetas de língua inglesa, possam meus versos encantar o leitor como o original, mas também sem o original, dada a fatídica circunstância de sua ausência. 


A VALEDICTION: FORBIDDING MOURNING

As virtuous men pass mildly away,
And whisper to their souls to go,
Whilst some of their sad friends do say
“The breath goes now,” and some say “No”;

So let us melt, and make no noise,
No tear-floods, nor sigh-tempests move;
‘Twere profanation of our joys
To tell the laity our love.

Moving of th’ earth brings harms and fears;
Men reckon what it did and meant;
But trepidation of the spheres,
Though greater far, is innocent.

Dull sublunary lovers’ love
(Whose soul is sense) cannot admit
Absence, because it doth remove
Those things which elemented it.

But we, by a love so much refined
That ourselves know not what it is,
Inter-assurèd of the mind,
Care less, eyes, lips, and hands to miss.

Our two souls, therefore, which are one,
Though I must go, endure not yet
A breach, but an expansion
Like gold to airy thinness beat.

If they be two, they are two so
As stiff twin compasses are two:
Thy soul, the fixed foot, makes no show
To move, but doth, if th’ other do.

And though it in the center sit,
Yet when the other far doth roam,
It leans, and hearkens after it,
And grows erect, as that comes home.

Such wilt thou be to me, who must
Like the other foot, obliquely run;
Thy firmness makes my circles just,
And makes me end, where I begun.


*

DESPEDIDA: PROIBINDO O PRANTO

Como os virtuosos que, a expirar, divisem,
Sussurrando-lhe adeus, o corpo da alma,
Enquanto alguns de seus amigos dizem
"Já não respira", e outros dizem "Calma",

Assim nos dissipemos, sem alarde,
Sem escarcéus de dor ou rios de pranto;
Fora nossa alegria profanar
Dizer aos leigos deste nosso encanto.

O abalo da terra aflige e apavora,
E o que ele traz em si todo homem sente;
O trepidar do firmamento, embora
Bem mais vasto se mostre, é inocente.

Maçante amor de amantes sublunares
(Cuja alma é só sentidos) não tolera
A ausência, que remove elementares
Princípios sob os quais se compusera.

Mas nós, por um amor tão refinado
Que sequer conhecemos os seus imos,
O pensamento mútuo-assegurado,
De olhos, lábios e toque prescindimos.

Assim, mesmo que eu parta, não serão
Partidas duas almas feitas uma:
Em vez de um rompimento, uma expansão,
O ouro batido à aérica espessura.

Sejam duas, o são à semelhança
Das duas rijas pernas do compasso:
Tua alma, a ponta fixa, não avança,
Porém se move consoante o traço;

E embora bem ao centro ela se assente
Ainda que a outra no horizonte suma,
Inclinando-se, busca-a atentamente,
E vendo-a regressar, logo se apruma.

Tal serás para mim, que ora preciso,
Como a outra perna, obliquamente andar;
Tua firmeza torna-me preciso
E faz-me onde começo terminar.



02 / 2016