quinta-feira, 19 de novembro de 2015

"Lenora", de Poe.

(por Timothy Cole)


O poema Lenore foi publicado pela primeira vez com esse nome em 1843; antes disso, se chamava A Paean, e sua disposição de versos era bastante diferente (este pode ser lido aqui).
Um paean, pt. péon, seria um hino triunfal clássico de evocação aos deuses, e o que o poema quer dizer é basicamente o que está no livro de Tessalonicenses: em tudo dai graças. Nas adversidades, dai graças. Em momentos de angústia, dai graças. Se vossa noiva virgem morreu, dai graças.

Formalmente, Lenore é composto de quatro estrofes, três de sete versos e uma de cinco: duas enunciações de um grupo de pessoas e duas réplicas do sujeito lírico, Guy De Vere. Os versos são, acredito, heptâmetros iâmbicos, conjuntos de sete pares de sílabas breves e longas alternadas:

Ah, broken is the golden bowl!the spirit flown forever!

Venho a crer que isso se estenda ao poema inteiro, com algumas sutis variações. No entanto, mais que uma composição qualquer, um olhar atento perceberia nesses versos bárbaros a junção de dois mais curtos, típicos da poesia inglesa: o tetrâmetro e o trímetro iâmbicos, como visto nos poemas de William Blake e Emily Dickinson que já traduzi e publiquei aqui e em muitos outros títulos da literatura inglesa.  
Essa observação permite compreender, entre outras coisas, a riqueza sonora do poema (i.e., o ritmo e as rimas internas usadas sem medo de ser feliz). O mais interessante é que essa assimilação deu ao poema um visual mais solene, grave, aproximando-o de uma marcha fúnebre, ou ainda dos dísticos elegíacos da Grécia antiga, compostos por hexâmetros e pentâmetros datílicos, versos longos por excelência.

Há pelo menos duas versões de Lenore rodando a internet, cada uma com os versos finais em ordens diferentes e com algumas modificações. Vali-me da menos conhecida, impressa na reunião The Complete Tales And Poems Of Edgar Allan Poe (Barnes & Noble, Nova York, 2006), pois é a que prefiro. 

Sempre tive a impressão de Lenore se tratar de um poema-protótipo de The Raven, que Poe publicaria dois anos depois. Nele, não mais de tom esperançoso, figura uma voz perturbada (um Guy De Vere desiludido?) pela perda de, pasmem, Lenora. No primeiro, o poeta ainda consegue tirar da morte da amada algum consolo: ela tornou-se um anjo e ascendeu ao Paraíso, e por isso ele deve tanger sua lira alegremente. Entretanto, passados dois anos, nem mais a existência do Paraíso é provável, e nada o convence da salvação de sua falecida noiva; pelo contrário, a bad vibe domina. Sem falar que os esquemas rítmico e rimático dos dois se assemelham um bocado, salvo pela construção mais complexa do último, com ritornelo e tudo mais. 

Enfim, se The Raven se tornou a obra-prima de Edgar Allan Poe, Lenore, ainda que um poema menor, teve um papel importantíssimo nesse reconhecimento, e devia aparecer mais nos estudos da poesia do pai do Simbolismo.


Considerações acerca da tradução:

I. Busquei manter a métrica e o ritmo original: os heptâmetros iâmbicos verti em versos bárbaros de 14 sílabas com acentuação geral nas pares, e quando possível em todas as pares do verso;
II. Apelei pra inventividade: nem tudo pôde ser mantido e muitas imagens se perderam em prol das rimas internas e do metro; para cuidar dessas perdas, procurei imagens e vocábulos semelhantes aos originais e que compensassem de algum modo as fraturas do poema; e
III. Recomendo a leitura de duas outras traduções deste poema (as duas únicas que pude encontrar): esta, que a autora diz ser sua primeira tradução de poesia, e esta, que acredito ser de Milton Amado.




***




LENORE 


Ah, broken is the golden bowl!—the spirit flown forever!
Let the bell toll!—a saintly soul floats on the Stygian river:—
And, Guy De Vere, hast thou no tear?—weep now or never more!
See! on yon drear and rigid bier low lies thy love, Lenore!
Come! let the burial rite be read—the funeral song be sung!—
An anthem for the queenliest dead that ever died so young—
A dirge for her the doubly dead in that she died so young.

"Wretches! ye loved her for her wealth and ye hated her for her pride;
And, when she fell in feeble health, ye blessed her—that she died:—
How shall the ritual then be read?—the requiem how be sung
By you—by yours, the evil eye—by yours, the slanderous tongue
That did to death the innocence that died and died so young?"

Peccavimus¹:—yet rave not thus! but let a Sabbath song
Go up to God so solemnly the dead may feel no wrong!
The sweet Lenore hath gone before, with Hope that flew beside,
Leaving thee wild for the dear child that should have been thy bride—
For her, the fair and debonair, that now so lowly lies,
The life upon her yellow hair, but not within her eyes—
The life still there upon her hair, the death upon her eyes.

"Avaunt!—avaunt! to friends from fiends the indignant ghost is riven—
From Hell unto a high estate within the utmost Heaven—
From moan and groan to a golden throne beside the King of Heaven:—
Let no bell toll, then, lest her soul, amid its hallowed mirth
Should catch the note as it doth float up from the damnéd Earth!
And I—tonight my heart is light:— no dirge will I upraise,
But waft the angel on her flight with a Paean of old days!"



LENORA


Partiu-se a taça de ouro! — o espírito escoa sem vestígio!
O sino canta — uma alma santa cruza o rio Estígio: —
E, Guy De Vere, tu vais sorrir? Pois chora, e chora agora
Ou nunca mais! No esquife jaz teu grande amor, Lenora!
Permite que se leia o rito — um último hino se ouça —
Um hino à morta mais formosa e que se foi tão moça —
A ela, duas vezes morta, pois se foi tão moça...

"Ó, Vis! Sua riqueza amastes, não sua altivez;
E, vendo-a fraca, a desejastes morta de uma vez!
Como deixar que o rito ocorra e tais canções se trovem
Se vosso olhar ferino — vossas línguas más se movem
Somente a sepultar a moça que se foi tão jovem?"

Peccavimus; — não te enfureças! O hino do Sabá
Solenemente eleva aos Céus, que à morta bem fará!
Quando Lenora foi-se embora, e assim toda a Esperança,
Ficaste a sós, triste e feroz por tua noiva criança —
Por ela, amável e tão bela, que na terra jaz,
A vida sobre as tranças dela, e, nos seus olhos, paz —
Que vivas tranças amarelas e olhos mortos traz.

"Já basta! Ide! O puro espectro à turba diga adeus!
Vá deste Inferno ao mais excelso posto junto aos Céus —
Deste abandono ao divo trono junto ao Rei dos Céus:
Não dobre o sino, e o espírito, enfim, no alçar-se alegre e santo,
Jamais regresse atado à prece desse horrível canto!
Pois eu — leve é meu coração — ignoro as elegias,
E louvo-lhe a ascensão com a Lira augusta de áureos dias!"
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¹ Lat. "Nós pecamos"