sexta-feira, 9 de julho de 2021

Traduzindo "Poeminho do contra", de Mário Quintana, para o inglês.




Tentativa de levar para a gringa esse que é um dos mais populares wordplays da poesia brasileira. Houve preocupação formal na medida exigida pelo poema: os dois primeiros versos octossílabos foram vertidos em tetrâmetros iâmbicos; o terceiro verso, redondilha menor, continuou pentassilábico. Somente no caso do último verso, originalmente com quatro sílabas, a atenção se voltou antes à sintaxe concisa que à métrica. Digladiei um tanto com esse jogo de palavras até encontrar um jeito de fazê-lo funcionar minimamente no inglês. No fim, gostei do resultado!

Um poema de Emily Dickinson.

138*


To fight aloud, is very brave —
But
gallanter, I know
Who charge within the bosom
The Cavalry of Wo —

Who win, and nations do not see —
Who fall - and none observe —
Whose dying eyes, no Country
Regards with patriot love —

We trust, in plumed procession
For such, the Angels go —
Rank after Rank, with even feet —
And Uniforms of snow.


138


Lutar em alta voz requer bravura —
Mas mais briosos são
Os que afrontam a Cavalaria
Da Dor — no coração

Que triunfam, e nações não reconhecem —
Tombam — e ninguém nota —
Cujo olhar sem vida, País algum
Fita com amor patriota —

Cremos nessa procissão de plumas,
Que os Anjos assim vão —
De Fileira em Fileira, em lenta marcha —
E neve por Fardão.



*Segundo a numeração de Franklin (1998).

A última visão


Lutar, buscar e não ceder: os astros
há muito nos deixaram, companheiros.
Que este deserto sem faróis nem rastros
abra-se a nós, os últimos — Pioneiros!

Dos náufragos veleiros sobre os lastros,
pendem mastros e velas derradeiros.
Força! Não só de velas e de mastros,
mas de fúria se fazem os veleiros.

Range o timão, amotinam-se os remos,
e um súbito facho rasga a tormenta
num corredor de espumas para o nada...

Cantem, flores de breu, e dançaremos
se o sopro que seu vórtice alimenta
refresca nossa fronte encarquilhada!

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Lembrança de Manuel Bandeira


Mais do que o justo desafino
do verso, das horas, da alma
(a alma cínica de menino
a recender na estreita palma),

do que maçã, ou gesso, ou cacto,
mais do que a inominada rosa
ou a pureza do verbo intacto
sob a superfície porosa,

de ti em mim, poeta, ressoa
a inelutável mansidão
de quem quis, e não foi senão
uma – entre o céu e o mar – pessoa.

sábado, 27 de março de 2021

Olaria


Em precisão de metáfora,
visitar uma olaria,
ofício que se debruça
nas concordâncias da argila;
ofício, sim, de destreza,
mas sobretudo de fibra,
de espalmar a massa bruta
como quem a amolaria.

Lubrificar o motor
que a matéria desfibrila
dando sentido ao seu eixo,
dorsal de vento, cacimba;
e como quem se emudeça
no assombro da coisa mínima,
ver a engrenagem da terra
em florescência centrípeta.

Mas no ponto de intumescer-se
afim aos ciclones e aos tigres,
às espirais da natureza
que petrificam a retina,
talhar o bronze latente
das divindades possíveis
com a perícia dos dedos
que a pedra do tempo afia.

Cerce trespassar o nylon
a combustão circunscrita
entre o torno e o corolário
e a novo sono induzi-la;
e porque enfim se preserve
a carnadura do giro,
na noite muda do forno
selar a roda do dia.

    E a despeito da incumbência:
    vaso, cumbuca ou manilha,
    entender que de processo
    é que se faz a olaria,
    nem tem fim esse mister
    que tampouco principia
    — e que da morna cerâmica
    à massa bruta e sanguínea
    a argila é mero pretexto
    para outra, oculta oficina.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Augúrio da possível manhã


Uma nova palavra 
germina entre os escombros,
e sem que se vislumbre 
seu destino de verbo,
um murmúrio montante,
caule tenaz, arguto,
triunfa sobre a estática
daninha do discurso
como uma espera rouca.

Um pássaro de sangue 
aurora o céu da boca.

A mudez pavimenta 
o solo; todavia,
embrião de ruínas,
é nela que se lavra
a tal palavra-muda, 
e é justamente dela
que reclama seu signo
antissonante, alheio 
à melífera fanfarra 
da língua que se amouca.

Um pássaro de sangue 
aurora o céu da boca.

Convém gestá-la, embora
tardia às tantas vozes
há tanto soterradas,
e embora as débeis fibras
que restem, por receio,
custem a articular
seu máximo esplendor,
e embora, muito embora
a noite seja muita
para alvorada pouca. 

Um pássaro de sangue 
aurora o céu da boca.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Ecdise


Pétalas sobre um galho úmido
e negro: um farfalhar,
e nada sobra, salvo um duro
desejo de durar.

Rompantes, raiam as cigarras
pelos troncos: a fibra
sedosa do ocaso, num rasgo,
dá que outra toada vibre,

outra: não o irrequieto estrídulo
da seiva subterrânea
aberta ao mundo; mais acídula,
oca e sólida ​—​ crânio

que à terra jamais se resigna ​—
outra eclode, mais muda
cantiga, presa, de resina,
ao pife que a modula.

Há muita música, excelente
voz vibrando escondida
nesse oco instrumento (por entre
serragens de sentido

e raspas mais de quintessência
que porventura fiquem
passada a ecdise, no silêncio
eloquente do líquen),

e acaso irrompam as cigarras
invisíveis, que tingem
a fibra sedosa do ocaso
de cobre, teso timbre,

alheias, quase troncos, não
sucumbirão ao próprio
eco e rebento, estas que são
matriz e fruto peco.

Vida, memória, flor num muro
fendido: ser o estar.
Nada mais resta, salvo o duro
desejo de durar.